Na Garagem: Castroneves perde decisão da F3 Sul-americana em ‘marmelada argentina’ para Croceri

Há 25 anos, Helio Castroneves disputava o título da F3 Sul-americana contra o argentino Fernando Croceri em plena Buenos Aires. O brasileiro conseguia o resultado que lhe dava a taça até os metros finais da derradeira volta da corrida, quando os compatriotas de Croceri praticamente pararam seus carros para deixá-lo passar e, assim, derrotar o brasileiro

19 de dezembro de 1993. Há vinte e cinco anos, uma das páginas mais tristes da história do automobilismo da América do Sul era escrita na decisão do Campeonato Sul-Americano de Fórmula 3.
 
Como personagens, Helio Castroneves, Fernando Croceri e demais coadjuvantes que ajudaram a rachar a competição de forma que os brasileiros seguiriam seu caminho de uma maneira e os argentinos, de outra. 
 
"Tudo isso foi o começo do fim da Fórmula 3 sul-americana", avaliou Castroneves – 25 anos mais tarde – ao GRANDE PRÊMIO. "Era uma categoria extremamente importante e que trazia uma certa união entre os países do continente e que poderia gerar trabalho e oportunidades para a descoberta de novos talentos."
 
E Helio era justamente um deles, naquele início de campeonato. Oriundo da Fórmula Chevrolet, vindo de uma equipe 'caseira' montada pelo pai e com a assessoria valiosíssima de Alfredo Guaraná Menezes, o piloto então com 17 anos fez a transição dos karts para os monopostos e se mostrou competitivo.
 
O passo seguinte foi a Fórmula 3. Helio fez em 1992 uma rápida aparição numa corrida no Rio de Janeiro e andou bem com um carro ultrapassado e alugado junto a Pedro Muffato. Sem muita escolha, foi com esse carro mesmo que ele e a equipe Corpal iniciaram os trabalhos para tentar mostrar alguma coisa em 1993.
 
Naquela época, a F-3 Sudam começava a ganhar contornos brasileiros. Após um predomínio gritante de Guillermo "Yoyo" Maldonado nos tempos de Fórmula 2, quando eles corriam com gasolina e os brasileiros com álcool, as coisas mudaram – em tese – com a troca de regulamento.
 
Leonel Friedrich foi o primeiro campeão em 1987, mas os vizinhos começaram nos anos seguintes a mostrar que o buraco seria muito mais embaixo. Com atitudes que geraram certa revolta, Juan Giacchino foi o vencedor da categoria em 1988 e Néstor Gabriel Furlán tornou-se campeão em 1989.
 
Só que a partir daí as equipes brasileiras superaram as argentinas em termos de competência e profissionalismo. A Daccar trouxe José Avallone Neto e muita polêmica na temporada vencida por Christian Fittipaldi, que já estava na Europa revezando entre a F-3 inglesa e sul-americana.

Depois, a Cesário Fórmula importou os motores Mugen Honda com preparação de Neil Brown e começou a enfileirar vitórias. Muito embora Affonso Giaffone Neto fosse o campeão de 1991 pela escuderia argentina INI, Marcos Gueiros leovu o troféu em 1992 e foi aí que a ciumeira começou.

 
Na cabeça dos argentinos, já que o paraense Gueiros venceu a competição no ano anterior e rumava para o automobilismo internacional (embora a carreira lá fora não fosse das mais entusiasmantes), a bola da vez era justamente Castroneves. 
 
E era contra ele que pilotos como Fernando Croceri – que curiosamente defendia uma equipe brasileira -. Gabriel Furlán, Gurí Martinez, Guillermo Kissling, Ricardo Risatti e Fabián Malta iriam lutar.
Helio Castroneves, hoje vitorioso nos EUA, lembrou da decisão da F3 (Foto: Rodrigo Berton/Grande Prêmio)

Em termos de carreira, todos muito mais experientes, mas Castroneves tinha chances sim de voos mais altos – e não era o único. Vários brasileiros usavam a F-3 sul-americana como trampolim para uma carreira internacional. Exceções honrosas eram os já veteranos Cezar "Bocão" Pegoraro e Pedro Muffato, que continuavam na ativa pelo simples tesão de guiar carros velozes a 240 km/h.

 
Muito bem: Castroneves começou o ano com um chassi Ralt que, pintado de branco, tinha um ponto de interrogação na carenagem. 
 
"Montamos o carro em Cascavel na oficina do Muffato e o deixamos de branco com a interrogação porque achávamos – eu e meu pai – que podíamos fazer barulho com aquilo", falou Helinho.  "E logo na primeira etapa em Londrina, o carro rachou no meio, entre o chassi e o motor. Quebrou mesmo. Tivemos que reforçar tudo com parafusos. Ficou feio, aparecia tudo. Mas no dia da corrida choveu muito e o carro quebrado estava mole. E isso nos ajudou debaixo d'água. Assustamos todo mundo porque chegamos em segundo", contou.
 
Para esconder os defeitos do Ralt, a equipe Corpal pintou o carro #16 de preto e foi aí que surgiu o Batmóvel, que estrearia em Resistência, na província argentina do Chaco. Uma corrida que os brasileiros não gostam de lembrar muito – e que Gabriel Furlán venceria.
 
As corridas seguintes foram no Brasil – duas em Interlagos e outra em Goiânia. No Planalto Central, Castroneves se envolveu na primeira polêmica com Fernando Croceri. Malandro, o argentino, que tinha 33 anos em 1993, espalhou pelo paddock que Helinho batera nele de propósito nos treinos. O objetivo? Desclassificar o piloto e fazê-lo se ausentar da disputa. O máximo que conseguiu foi que os comissários lhe dessem uma tremenda bronca.
 
"Caí no jogo dele", revelou o brasileiro. "Ele tinha experiência e sabia manipular a situação. Meu pai me deu uma lição muito grande naquele fim de semana. O Croceri resolveu me atrapalhar na chicane e nos enroscamos – na pista e nos boxes. Acho que foi aí que a guerra realmente começou", comentou.
 
Nas etapas seguintes, mais problemas: em San Jorge, a gasolina estava 'batizada' com água. Mas aconteceu o seguinte – só os motores dos carros dos brasileiros quebravam. Para nenhuma surpresa, vitória de Gabriel Furlán, com Gurí Martinez em segundo e Marcelo Benítez em terceiro.
 
Todos argentinos – todos da equipe GF Motorsport, de Furlán.
Fernando Croceri (esquerda) administra a pista de Buenos Aires, onde venceu o título da F3 em 1993 (Foto: Autódromo Oscar y Juan Gálvez)

Para piorar, em Guaporé, Castroneves não foi além do 16º lugar nos treinos classificatórios, salvando ainda um pontinho pelo sexto lugar. Fernando Croceri venceu e, faltando cinco etapas, Helio estava com 21 pontos. O piloto da Cesário Fórmula tinha 39 e Furlán, vice-líder, 32.

 
Em setembro, veio a corrida de Posadas e a notícia foi o abandono de Croceri. O problema é que Gabriel Furlán ganhou mais uma e assumiu a liderança da classificação com 41 pontos, enquanto o brasileiro foi apenas o oitavo colocado após uma saída de pista.
 
A reta final do campeonato se aproximava e, em 24 de outubro, aconteceu a nona etapa em Londrina, o mesmo circuito da estreia do Batmóvel – que ainda não era Batmóvel quando riscou o asfalto na primeira prova da temporada. Largando de sexto num grid que contou com 17 pilotos, Helio fez uma corrida espetacular e conquistou a primeira vitória na temporada. A mais suada, a mais difícil de todas. "O carro terminou literalmente no chão, com os pneus dianteiros furados", revelou o piloto. "A vitória deu um novo ânimo à equipe Corpal, porque nós não tínhamos patrocínios para desenvolver o carro, embora estivéssemos na maioria das vezes entre os seis primeiros", confessou.
 
Com Croceri chegando em segundo e Furlán em sétimo – fora da zona de pontos (eram tempos em que só os seis primeiros pontuavam), o piloto da Cesário voltava à dianteira da tabela com 45 pontos, enquanto Gabriel estacionava em 41 e Castroneves subia para 30.
 
E então surgiu uma outra personagem na história: Amir Nasr.
 
Com sua oficina sediada dentro do autódromo de Brasília, o antigo piloto da própria Fórmula 3 se tornara chefe de equipe. Ao longo do ano, teve a bordo de seus carros Tarso Marques e Norio Matsubara. Mas os dois não seguiriam até o fim da temporada e uma vaga se abria. Amir procurou Hélio Castro Neves (o pai) e Alfredo Guaraná Menezes.
 
"Ele queria ganhar o campeonato. E nós também. Fizemos um teste em Brasília e batemos o recorde da pista", contou Helio. O equipamento da Amir Nasr Racing era competitivo e a aerodinâmica do Ralt Mugen Honda #5 era semelhante à do modelo que dera a Rubens Barrichello o título da F-3 inglesa. Um acordo foi fechado: Castroneves defenderia a nova equipe até o fim do ano e a Corpal seguiria até o fim da temporada com novos pilotos.
 
A décima etapa do campeonato aconteceu em 21 de novembro no quintal de casa da equipe Amir Nasr. Helio fez a pole-position num grid de 20 carros e não teve adversários. Venceu com sobras. Fernando Croceri foi apenas 6º colocado e com Furlán em terceiro, o placar apontava apenas sete pontos separando os três primeiros colocados.
 
Nessa altura, ninguém mais duvidava que Castroneves estava na briga pelo título. E menos ainda no dia 5 de dezembro, quando se disputou a penúltima etapa, na terceira visita do campeonato a Interlagos.
 
Novamente na pole, o paulista venceu mais uma. Era a terceira vitória seguida em 1993, o que provocou mais ciumeiras nos argentinos. Croceri chegou em segundo, espumando de raiva e Furlán, com a desclassificação de Tarso Marques e a participação sem pontos de Pedro Paulo Diniz, ficou com o terceiro lugar.
 
Helio ainda era o terceiro na tabela com 48 pontos, mas a diferença entre ele e Fernando diminuía cada vez mais – chegara a quatro, com Furlán entre eles, no meio. Era vencer ou perecer, na batalha final em 19 de dezembro, no Autódromo Juan y Oscar Gálvez, em Buenos Aires.
 
Ninguém melhor do que o brasileiro para contar como e porque tudo aconteceu.
 
"Eu e o Amir conversamos bastante antes da corrida sobre como conservar os pneus", disse Castroneves. "No warm up, ele tirou cambagem das rodas traseiras e eu não queria. O nosso Ralt saía muito de frente. Mas ele garantiu que isso conservaria os pneus."
 
"Larguei na pole e caí para terceiro no acender da luz verde. O carro saía muito de frente e comecei a ficar sem paciência. Até que cometi um erro e caí para sexto. Fiquei uns 15 segundos atrás do líder", revelou o brasileiro.
 
"Eu estava mesmo assim na frente do Croceri, mas tinha que ganhar a corrida para me tornar campeão. E o Amir tinha razão quando mudou a cambagem dos pneus. Todo mundo à minha frente começou a enfrentar desgaste e o meu carro virou um foguete."
 
"A pista era muito manhosa e encontrei um jeito de fazer a curva 1 em sexta marcha. E comecei a passar todo mundo por fora. Foi muito bacana! E a três voltas do final, cheguei finalmente à liderança. O Croceri era quinto quando abri a última volta e pelo rádio gritaram pra mim 'CAMPEÃO! CAMPEÃO!'. E quando cheguei no parque fechado, estava todo mundo triste e eu não entendi nada. Encontrei meu pai e ele me levou para o box", disse Castroneves.
 
O que aconteceu foi o seguinte: na última volta, os três pilotos argentinos que vinham em segundo, terceiro e quarto lugares – Fabián Malta, Gabriel Furlán e Guillermo Kissling – literalmente pararam seus carros, permitindo assim que Fernando Croceri chegasse na segunda posição para conquistar – por um ponto – o título da temporada de 1993.
 
"O meu troféu de campeão chegou amassado às minhas mãos. Não sei se houve pancadaria, mas acho que isso (a situação da última etapa) que aconteceu porque somos todos competitivos. Nós já vimos muitas ordens de equipe na Fórmula 1, mas com equipes diferentes como dizem que aconteceu naquela vez, nunca", afirmou. "Tudo isso me fez amadurecer como piloto e não tenho nenhum rancor sobre esse episódio", confessou o piloto depois de tanto tempo.
 

A Fórmula 3 sul-americana definharia em 1994. Croceri ficou nela para defender seu título, mas Gabriel Furlán foi o campeão num ano praticamente sem pilotos do Brasil – somente Augusto Cesário fez uma ou outra corrida. Por aqui, os nossos receberam equipamento de ponta, semelhante ao dos europeus e o Campeonato Brasileiro foi ganho por Cristiano Da Matta. 
 
O campeonato continental seria reunificado em 1995 e dominado por um piloto chamado Ricardo Zonta. Gabriel Furlán se tornaria o maior nome da categoria, com quase 40 vitórias e quatro títulos. Mas o desinteresse dos argentinos aumentou com o passar dos anos, a categoria minguou e tornou-se unicamente brasileira. Em 2017, disputou-se, mas – até o momento – foi a última temporada da categoria. Guilherme Samaia foi o campeão.
 
Helio seguiu para a Europa e depois para os EUA, onde construiu uma belíssima carreira internacional, conquistando inclusive três edições das 500 Milhas de Indianápolis, defendendo o Team Penske com brilhantismo desde o ano de 2000 – até hoje.
 
Fernando Croceri, hoje com 58 anos, é um respeitado dirigente do automobilismo argentino. Ele está envolvido com a Asociación Argentina de Volantes (AAV), instituição lendária no esporte daquele país por cuidar do seguro saúde de todos os pilotos e copilotos da Argentina. Fernando também se dedica à educação viária e desportiva e é igualmente o administrador do Autódromo Juan y Óscar Gálvez.
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