Licitação irregular, empresa inválida e pista em ‘Monza’: os erros do autódromo do Rio

Foi em meados de maio que o consórcio Rio Motorsports venceu a licitação para a construção do autódromo de Deodoro, no Rio de Janeiro, que tem a intenção de abrigar a Fórmula 1 a partir de 2020. De lá para cá, no entanto, vieram a público problemas envolvendo o projeto: licitação irregular, ausência de estudo ambiental e a própria empresa, que não possui o capital necessário para a execução da obra

Tudo começou no início do mês de maio, quando o presidente Jair Bolsonaro anunciou a assinatura de um termo de compromisso para levar a Fórmula 1 de São Paulo para o Rio de Janeiro, em um autódromo a ser construído na região de Deodoro. Na época, o mandatário assegurou que a etapa brasileira do Mundial já seria disputada na capital fluminense em 2020 – ignorando completamente o acordo vigente com Interlagos, que se encerra no ano que vem. Mais tarde, já no mês passado, o mesmo presidente, após encontro com o chefe da F1, Chase Carey, anunciou, novamente por conta própria, que a corrida será em 2021. Na sequência de sua fala, o dirigente americano não confirmou a informação.

Esse é apenas o episódio que abre a série que tenta mudar o palco do GP do Brasil no país. Um outro capítulo, ainda cercado de incertezas, tem a ver com o local, uma vez que não há um circuito capaz de receber a maior das categorias do esporte a motor no Rio


Desde a declaração de Bolsonaro, os trâmites para dar vida ao projeto foram acelerados. Apenas 13 dias depois do primeiro pronunciamento do presidente, a Prefeitura carioca confirmou que o consórcio Rio Motorsports havia vencido a licitação para a execução das obras da nova pista. O grupo, aliás, foi o único interessado na concorrência. 

A publicação no Diário Oficial do Rio de Janeiro, entretanto, veio confusa e sem qualquer explicação sobre como o projeto será financiado. Além disso, deu-se somente um dia depois de o Ministério Público Federal pedir que o processo licitatório fosse adiado devido à ausência de um estudo de impacto ambiental na região de Deodoro

E é aí que se abrem outras questões. Se não mostrou como pretende bancar todas as fases da construção — uma vez que os governos federal, estadual e municipal garantiram que não haverá envolvimento de verbas públicas —, o projeto revelou que a construção será efetuada pela construtora espanhola Acciona, ao passo que alemã Sporttotal e a brasileira Golden Goal, apresentada como "especializada em gestão e marketing esportivo", também integram o cenário.

Desde então, uma série de reportagens da imprensa brasileira e apurações feitas pelo GRANDE PRÊMIO denotam a nebulosidade da ação. O GP traz aqui tudo que foi levantado para demonstrar que, além do esquisito envolvimento do presidente, há uma série de irregularidades que invalidariam a natureza desta empreitada.

Área destinada à construção do autódromo de Deodoro, no Rio de Janeiro (Foto: Divulgação)

O Rio Motorsports tem à frente uma empresa homônima sediada na cidade de Dover, no estado americano do Delaware, cuja reputação é de um estado com amplo sigilo sobre a operação de empresas. José Antonio Soares Pereira Júnior, conhecido como JR Pereira, é quem está na linha de frente e é o presidente do grupo. Um outro componente é Luiz Fernando Mendes de Almeida Junior. Que, segundo revelação do Panama Papers — conjunto de documentos que revelou milhares de companhias em paraísos fiscais —, teve uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, a Kennedia Management. A empresa foi aberta no começo de 2014 e encerrada antes do fim de 2015.

O nome de JR Pereira também aparece em uma dívida milionária com a União, mas por outra empresa. Segundo informações da Folha de S.Paulo, Pereira foi responsável por uma companhia chamada Crown Telecon, que faliu e deve quase R$ 24.7 milhões à União. José Antonio fez carreira nos EUA na área de segurança e defesa. Foi assim que fez contato com as Forças Armadas/militares brasileiros e chegou em Bolsonaro.


Só que o nome do empresário está também ligado à Crown Assessoria e Consultoria Empresarial S.A, em que é sócio, segundo informações do portal G1. De acordo com a matéria publicada no último sábado (29), essa foi a empresa que prestou consultoria e ajudou a elaborar os estudos que deram origem ao edital de licitação para a construção do autódromo de Deodoro – licitação ganha pelo consórcio presidido por JR Pereira.

Assim, estão claramente feridos os princípios de impessoalidade, moralidade e igualdade previstos no artigo 3º da Lei das Licitações, já que JR Pereira já sabia de antemão, via Crown, como seria a licitação para sua outra empresa, a Rio Motorsports.

Ainda de acordo com o G1, no dia da abertura dos envelopes da licitação – que teve apenas uma empresa concorrente -, o Rio Motorsports mandou outro representante: Jeferson Sidnei Santos Salles, que é diretor-presidente da Crown Assessoria. O edital ainda fala em um pagamento de R$ 7,1 milhões à Crown, "relativo aos custos incorridos na preparação dos estudos que embasaram a presente concessão administrativa", também na matéria do G1.
 
O Rio Motorsports ganhou a licitação para construir o autódromo em Deodoro, em um terreno cedido pelo Exército. O contrato fala em uma concessão de 35 anos. A obra tem um valor estimado de R$ 697 milhões. E aqui se abre outra questão sobre o projeto. Também segundo o G1, o capital social da empresa é de R$ 100 mil, conforme o registro na Junta Comercial do Rio de Janeiro. Esse valor, entretanto, equivale a 0,14% dos R$ 69 milhões de capital social mínimo exigido pelo edital da licitação – 10% do valor total estimado do acordo.

Ainda, a empresa tinha cinco dias úteis após a licitação para abrir uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) com esse capital, mas não o fez, também segundo a reportagem.
O autódromo de Deodoro no Rio de Janeiro (Foto: Divulgação)

A defesa dos envolvidos

A Prefeitura do Rio de Janeiro negou irregularidades no processo. Garantiu que a licitação foi baseada em um procedimento de interesse (PMI) e que, neste caso, é permitido que a empresa que fez o estudo que fundamenta o edital possa participar da concorrência. O Rio Motorsports também negou qualquer ato ilegal. Ambos ainda afirmaram que o capital social no valor de 10% só precisaria ser comprovado no momento da assinatura do contrato, mas que isso ainda não aconteceu.

Outro capítulo 

O processo de licitação vencido pelo Rio Motorsports também chamou a atenção do Ministério Público do Rio de Janeiro, que apura se houve um procedimento irregular. De acordo com reportagem de O Estado de S.Paulo do último sábado, o MP-RJ investiga um possível direcionamento para uma empresa específica na concorrência pela construção do autódromo.
 
Em documento ao qual o Estadão obteve acesso, o Ministério Público Federal indicou que o edital de concorrência foi alterado, de modo que a versão final “demonstra que a licitação é direcionada para empresa específica”. O órgão já pediu à Justiça Federal do Rio a suspensão da contratação e enviou Ação Civil ao Ministério Público Estadual.

Segundo o Ministério Público Federal, a primeira minuta do edital lançado pela Prefeitura do Rio de Janeiro previa que a equipe a ser contratada para a elaboração dos projetos da obra de construção do autódromo deveria possuir, entre outros itens, experiência na elaboração do Estudo de Impacto Ambiental.
 

A área cedida pelo Exército para a construção do autódromo no bairro de Deodoro compreende a Floresta de Camboatá, único ponto remanescente de Mata Atlântica em região de terra plana no Rio de Janeiro, segundo o MPF.

A Prefeitura do Rio de Janeiro também respondeu a reportagem do Estadão e argumentou que o processo licitatório foi realizado de acordo com o previsto no edital. "O edital resultou de uma PMI (Procedimento de Manifestação de Interesse) lançada em 2017, com audiência pública em 23/11/18 e foi analisado durante aproximadamente cinco meses pelo Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (TCM)”, informou a Prefeitura em nota. O órgão também afirmou que “a Comissão de Licitação adotou integralmente todas as orientações sugeridas pelo TCM".
 
O Rio Motorsports, também procurado, se defendeu e argumentou que não foi notificado pelo Ministério Público Federal para prestar esclarecimentos a respeito do processo de licitação.

Uma certa confusão

E o mais recente episódio dessa série que parece tirada de um roteiro confuso e com reviravoltas nada interessantes, veio da Prefeitura do Rio de Janeiro. No último dia 30 de junho, o perfil do Facebook da Prefeitura trouxe uma arte com informações sobre Deodoro, alardeando sobre a importância do autódromo. Só faltou dizer que aquele não é o autódromo de Deodoro… É Monza, uma das pistas mais famosas do mundo. Mas no meio de uma história com tantos e tamanhos desencontros, não é de surpreender que os agentes públicos atuem com tão pouco apreço pelo bem informar.

Paddockast #23
Lágimas em Le Mans

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