F1 tem de criar mecanismos de punição e enfrentar cultura para peitar assédio dos fãs

O GP da Áustria mostrou um gargalo no comportamento de fãs da Fórmula 1, mas de forma alguma foi novidade para quem acompanha os movimentos do público. Agora é enfrentar o problema com seriedade

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Na pista, o GP da Áustria de Fórmula 1 do último fim de semana foi uma das melhores corridas da temporada e marcou o retorno de Charles Leclerc às vitórias depois de uma sequência infernal de agouros nas semanas anteriores. Bom para ele e para a Ferrari, que venceu mesmo com o motor de Carlos Sainz estourando – o terceiro estouro de motor em 11 corridas no ano para o time italiano. Fora da pista, nas arquibancadas, o que sublinhou o evento foi outra coisa, muito diferente e de cunho negativo. Os casos de assédio registrados nas arquibancadas ao longo dos três dias. Embora não seja a primeira vez que algo assim acontece no meio do público, é a chance de discutir a sério o que a F1 deve fazer daqui para frente para bater de frente com o que começa a se tornar um grotesco hábito.

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A história começou a pipocar nas redes sociais no sábado e ganhou reconhecimento mundial no domingo pela manhã, quando a F1 soltou uma nota de repúdio que tratava de “comentários totalmente inaceitáveis” feito por fãs nas arquibancadas do Red Bull Ring, em Spielberg. Mas do que se tratava?

Pois bem, os tais comentários eram muito mais que comentários, sobretudo da enorme torcida pró-Red Bull e Max Verstappen – que corriam em casa – e contra aqueles dispostos a torcer para Lewis Hamilton naquele circuito. Uma mulher fardada com roupa em homenagem a Hamilton relatou ter tido a saia levantada por torcedores do ‘Mar Laranja’ de Verstappen. A resposta do responsável pelo assédio? “Fãs de Hamilton não merecem respeito”. Outro torcedor relatou ter tido o boné roubado e, num vídeo divulgado posteriormente, a torcida colocou fogo na vestimenta. Os relatos caminharam entre puro e simples assédio sexual, assédio moral e declarações de cunho homofóbico e racista. Estes são dois exemplos de muitos outros.

A torcida de Max Verstappen era esmagadora maioria na pista da Red Bull e próxima da Holanda (Foto: AFP)

Então, em primeiro lugar, por que a Fórmula 1 reagiu tratando toda esta seara de assédios diversos como “comentários inaceitáveis”. Na linha do que Gabriel Carvalho disse na última edição do Paddock GP, programa de debates do GRANDE PRÊMIO, comentário inaceitável é dizer que ‘Os Parças 2’ é um filme mais completo que ‘O Poderoso Chefão’. Os relatos vindos das arquibancadas do Red Bull Ring são perturbadores e, em vários casos, criminosos.

“Ficamos cientes de relatos de que alguns fãs foram alvos de comentários completamente inaceitáveis vindos de outros torcedores durante o evento. Levantamos isso com o promotor [da corrida] e com a segurança local e ouviremos todos que relataram tais incidentes e estão levando muito a sério. Esse tipo de comportamento é inaceitável e não será tolerado. Todos os fãs devem ser tratados com respeito”, foi o comunicado da F1 na manhã do domingo da corrida.

Uma demonstração de fraqueza, mais uma, aliás, de uma F1 que tem medo de chamar as coisas pelo que são. Assim como no caso de Nelson Piquet, o comunicado oficial não explica do que se trata o repúdio. É um repúdio vazio. Se a F1 decidiu banir Piquet do paddock pelo caso de racismo e homofobia contra Hamilton, como cravado por vários veículos da imprensa inglesa, por que é que não informou oficialmente, explicando do que se trata? Seria medida importante para explicitar os motivos pelos quais tomou tal decisão e onde traça a linha do inaceitável.

Desta maneira, no sapatinho, esperando que o mundo de acerte ao redor dela sem que haja mais fricção que o esperado, a Fórmula 1 se recusa a ser contundente. Quando tratou do caso de racismo de Nelson Piquet, Damon Hill disse algo interessante.

“Há muito tempo eu quero que o esporte seja abundantemente claro sobre defender certos valores, mas o argumento contra isso era que não podiam ser políticos. Essa era a resposta: não somos uma organização política, não podemos. Mas isso não é política: é decência de valores humanos. E o esporte também tem de ser sobre isso”, afirmou o campeão mundial de 1996.

No caso dos assédios – voltado sobretudo contra minorias sociais – na Áustria, a opinião de Hill ressoa. Sem dizer claramente o que defende e o que abomina e por quais motivos, com seriedade, sem largar palavras ao vento de forma genérica, a F1 se mostra propositalmente anêmica na defesa de valores que à essa altura da sociedade não podem mais ser vistos como políticos, mas como humanos. É puramente a defesa da dignidade dos fãs para que a Fórmula 1 seja de todos. Afinal, é nisso que o Mundial tem se apegado nos últimos tempos, desde a popularização transloucada entre os mais jovens e em públicos ‘novos’, como o dos Estados Unidos. Eram públicos com os quais a F1 tinha dificuldade histórica, mas agora é nesses grupos que nada de braçada.

É preciso se mostrar, com clareza, em que lado da defesa dos direitos humanos se está. Até porque, diferente de tempos passados, conter assédios já não pega mal num mercado financeiro e publicitário que ainda é cruel, mas aprendeu que abuso custa dinheiro. É o mínimo, pois, agir.

Mas mais do que isso, a Fórmula 1 tem de criar mecanismos de punição. Por conta do tamanho do público e da extensão de autódromos é mais complicado fixar imagem de TV em todos os cantos e a todos os momentos do que em estádios de futebol – mas os smartphones funcionam como aliados. Em primeiro lugar, o sistema de segurança no local precisa ter mais controle sobre a situação. Isso, sim, é algo de responsabilidade dos promotores, mas não é desculpa. A F1 tem diálogo com todos os promotores de eventos do calendário e, no fim das contas, estes dependem mais do campeonato do que vice-versa. Uma série de diretrizes sobre resposta de segurança para casos como estes, de assédio moral ou físico, têm mais chances de prosperar do que uma resposta particular de cada evento ou cada segurança para tratar de torcidas diversas.

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Por exemplo, então, definir que, sobretudo em área de torcidas organizadas, é necessário ter segurança atenta aos possíveis torcedores de pilotos e equipes rivais. É muito importante que assim seja, porque uma pessoa solitária em meio a um público hostil pode sofrer certos abusos sem que tenha testemunhas para corroborar qualquer tipo de excesso. E quando visto, saber como agir para identificar o agressor e, além de tratar o assunto no momento com punições que podem ir de aviso à expulsão da pista, dependendo do tamanho da bobagem, consiga passar o nome do sujeito adiante para que as esferas mais poderosas do evento e da F1 consigam pensar em punições posteriores.

Depois deste primeiro degrau de identificação, a Fórmula 1 tem de ter um mecanismo de punição. Uma tabela, que funcione de verdade, para responder com veemência e consistência contra abusos dos mais diversos. Quais os tipos merecem uma multa financeira, quais devem render um banimento de um ou mais anos e quais precisam ser contrapostos com um banimento eterno. Levantar a saia de alguém é banimento contínuo, ou deveria ser. Tudo isso não pode sair da cabeça de Stefano Domenicali, o diretor-executivo responsável por dar o beijo da morte na iniciativa ‘We Race As One’, ou outro ignorante na matéria. Precisa ser um planejamento elaborado por especialistas que entendam dos assuntos muito mais que filósofos das respostas aos acionistas. A F1 tem a capacidade logística de criar uma Interpol própria no sentido de mandar a todos os promotores do mundo as identificações de agressores impedidos de entrar nas imediações de um evento dela própria em qualquer parte do mundo.

A clareza real sobre o que pensa e o que não aceita e um plano de ação para fazer saltar de qualidade a segurança nas pistas e punir agressores tanto nas arquibancadas quanto fora delas são necessidades imediatas e que a F1 é capaz de estabelecer com certa rapidez.

Os leitores que acompanharam o texto até aqui talvez estejam se questionando se não haverá cobrança para o encaminhamento destes fãs às esferas judiciais, com processos e prisão. A resposta é um pouco mais complicada, porque a tipificação de atos cometidos em eventos esportivos como atos criminosos varia de país para país e pode ser definida apenas na esfera legislativa de cada nação. Portanto, a F1 pode encaminhar o caso e as identificações para as autoridades locais, mas não tem poder de polícia ou de promotoria para levá-los adiante por conta própria.

Mas é aí que entra um próximo passo, além dos que foram tratados como urgentes. Como uma organização bilionária e mundial, a Fórmula 1 tem um poder muitas vezes ignorados pelos fãs no mundo todo: o poder do lobby. Num caso famoso, no fim dos anos 1990, Bernie Ecclestone liderou, com o auxílio de Max Mosley, então presidente da FIA, uma carga para evitar o banimento pan-europeu de patrocínios da indústria do tabaco, algo que afetaria bastante as finanças naquele período. O assunto virou escândalo inglês após o salário de Ecclestone ser revelado junto da quantia que havia doado na eleição que definiu Tony Blair como primeiro-ministro britânico. No fim das contas, Ecclestone sabia que o banimento do tabaco viria em algum momento, mas conseguiu atrasar durante certo tempo.

Mas o lobby pode servir também para outros fins. O peso da marca F1 atuando em prol de que assédios diversos, como os vistos na Áustria, passem a ser passíveis de processos legais como crimes comuns e possam render de multas até tempo de prisão. Os países por onde a Fórmula 1 passa ao longo do ano são muito diferentes e é muito difícil estabelecer certas comparações entre Arábia Saudita e a Áustria, por exemplo, mas um trabalho habilidoso e contínuo terá seu valor. Não apenas isso, mas a F1 tem condições financeiras e de distribuição de desenvolver trabalhos educativos e de conscientização de direitos humanos pelo mundo. Seja patrocinando medidas educativas de instituições sérias de país a país ou criando as suas próprias para se envolver com pilotas e pilotos que dão seus primeiros passos no esporte.

O cenário do GP da Áustria (Foto: Red Bull Content Pool)

Particularmente, não sou daqueles que acredita que o esporte tem de curar o mundo. O esporte é um microcosmo da sociedade que está inserido e nada mais é que um reflexo. Em esportes de nicho mais restrito, o microcosmo é menos significativo, mas numa F1 que vive boom de popularidade, representa bastante. Em meio a sociedades conturbadas, em escalada crescente de violência e poder de extremas-direitas pelo mundo, não estranha que casos como os da Áustria – e do Brasil, do ano passado -, apareçam. O público da F1 não criou a agressão, mas a agressão aparece nele porque o público da F1 é grande o bastante para representar a sociedade em que está inserido.

Sobretudo numa realidade extremamente e historicamente voltada ao público masculino como se fosse a epítome da macheza – carros rápidos, adrenalina no limite e vida de playboy em destaque -, a Fórmula 1 ‘esconde’ a olhos vistos uma cultura machista. E se as circunstâncias fazem o trabalho de aprofundar ainda mais as tensões sociais de determinado local, o público em maioria masculino e em grande parte atraído para o esporte pela licença poética histórica de que ‘boys will be boys’, o diferente é tudo aquilo que não se assemelha a isso. É a mulher, a comunidade LGBTQIA+ e qualquer pessoa não-branca.

Há uma questão política que é inegável: em sociedades em escalada de violência e tensões sociais graves, o caminho está pavimentado para que a reação ao diferente tenha intuito de machucar. Isso se junta ainda à mentalidade das fandons, fermentada pela internet nas duas últimas décadas.

O fanatismo no suporte a atletas, organizações e celebridades não é, evidentemente, um fenômeno novo. Está aí desde sempre e, ao longo das décadas, causou muitos problemas. A questão é que na era da internet, as comunidades de fãs se tornaram muito maiores – já não há mais a fronteira da distância ou a limitação de tamanho dos grupos que se formam. Se o telefone permitia que pessoas em diferentes partes do mundo conversassem, os WhatsApps da vida permitem que essas conversas envolvam dezenas, centenas ou milhares de pessoas. É muito fácil mergulhar nas pequenas comunidades de devoção onde você se sente confortável e, assim, cada vez mais se afastar do contraditório. É a receita da radicalização.

Na era das fandons, não há somente torcida: há a batalha do bem contra o mal. E o mal é qualquer um que esteja em lados opostos. Não há um personagem interessante ou até mesmo admirável: há um gênio sem defeitos. A perfeição virou regra para quem se admira. Aí, o que aparece é uma simples sequência lógica: eu gosto do meu piloto, então ele é perfeito > se é perfeito, não é possível que cometa erros ou que tenha falhas inerentes à personalidade > se é alguém sem defeitos e maravilhoso, então quem tenta derrotá-lo está a serviço do mal > o mal tem de ser derrotado de qualquer maneira que for possível.

A devoção pelo Sem Defeitos se torna explosiva quando pareada com sociedades em disfunção: tomadas ou golpeadas por extrema-direita forte, como Brasil e Áustria, ou por tensões e convulsões sociais das mais diversas. O esporte é mais vítima que agressor na criação deste ambiente, mas pode ser partícipe caso olhe de lado e finja que não está vendo. É o que a F1 faz neste momento ao agir de maneira pequena. É possível agir apropriadamente, porém. Que seja hora.

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