Coluna Warm Up, por Flavio Gomes: Caro Seichelles

Os anos passaram, você também parou de viajar com a F1, a última cobertura internacional foi em Pequim, na Olimpíada, outro turning point, não sei como é que vocês falam isso em português, e você hoje está no Rio, eu estou por aqui, e o jornal te mandou embora e agora é sua vez de começar de novo

Vão achar que esta carta é coisa de boiola, mas como você é meu melhor amigo, não se incomode. Inclusive porque você é mesmo meio boiola.

Pois é, a “Folha” te mandou embora. Welcome to the club. Se bem que seu caso foi bem diferente. São outros tempos. Quando saí, em 1994, jornal ainda era importante. Hoje não é mais. São vários os motivos, mas não é sobre isso que te escrevo. Saí por desobedecer uma ordem. As delícias de ser um transgressor aos 29 anos e dar uma banana para o futuro. Do futuro cuido eu, e cuidei. Você foi vítima daquilo que chamamos de “passaralho”, termo que usamos no jornalismo e que vem sendo aplicado com notável eficiência pelas empresas de comunicação desde os tempos de Gutenberg.

“Passaralho”, o pássaro com cara de caralho, nunca entendi direito essa palavra esquisita, de onde veio, como surgiu. Ele passa voando com sua cara de pênis ereto e esvazia as redações. É bem a cara do jornalismo atual. Ferro na boneca. Você contou no seu blog que cobriu a primeira corrida de F1 em Nürburgring, 1998. Lembro bem dessa estreia, você chegando naquele fim de mundo sem hotel, e acabou dividindo quarto com o Livio numa pensão barata sem banheiro no quarto. Aliás, melhor nem entrar em detalhes sobre o que, rezam algumas lendas, aconteceu naquele quarto.

Até 2005, quando eu parei de viajar para as corridas, fizemos mais de 100 GPs juntos. E como durante quatro anos fomos também parceiros na rádio Bandeirantes, creio que temos bastante história para contar. Boa parte delas impublicáveis. Inclusive o que fizemos em Imola. Não, não estou falando da entrevista com a Viviane Senna. Você devia se envergonhar daquilo, inclusive.

Foram anos viajando pelo mundo rachando quartos, carros, contas, equipamento, matérias, fui seu padrinho de casamento, enchemos a cara mais vezes do que recomenda a boa educação, andamos de avião, ônibus, metrô, barco, nos metemos em algumas encrencas, gastamos dinheiro com o que não precisávamos, viramos madrugadas escrevendo furiosamente, destruímos tomadas de telefone, fizemos milhares de boletins de telefones públicos em todos os cantos do mundo, fechamos bares e restaurantes, perdemos voos, brigamos com pilotos, ganhamos amigos do peito, todos os italianos, alguns ingleses, outros alemães, portugas, japas, uns franceses, todos os caras da FIA que ainda hoje abrem um largo sorriso quando nos veem em Interlagos, nos divertimos, vivemos a vida, enfim.

Fabio Seixas e Flavio Gomes (Foto: Stephan de Penasse)

Por viver a vida, entenda-se: sair pelo interior da França atrás de peças de Gordini, rodar o bairro gótico de Barcelona para comprar tampa de privada, pagar propina para policiais atrás do Parlamento de Budapeste, se aventurar pelo submundo de Bangcoc, entrar num ônibus erótico em Nürburgring, jogar dardos em Spielberg, descobrir Berlim de bicicleta, bater o carro num barranco em Nevers, mergulhar de cueca num lago gelado na Casa de Pedra francesa, atravessar um canteiro central de carro em Montreal, cair de cabeça na frenética noite de Kuala Lumpur, montar um time de futebol em Suzuka, quase pegar o trem-bala para o lado errado em Nagoia, brigar no trânsito com um redneck em Indianápolis gritando “Bin Laden” duas semanas depois do 11 de setembro, entrar naquela merda de estilingue gigante em Auckland, atolar um Mini no estacionamento de Monza, roubar uma antena para o mesmo Mini em Milão, escolher tinta para o cabelo em Zurique, comer um ensopado de sei lá o quê em Xangai, achar a médica do Senna em Bolonha, encontrar um apartamento alugado em Manama — sem mapa e endereço —, devorar um pote de Nutella numa madrugada de Spa, pegar o último trem de Mônaco para Menton (sorte que eram apenas dodici minuti), acordar em Paris com grãos de café no colchão, mandinga que me irritou profundamente, fazer guerra de neve em Madonna di Campiglio, cobrir atentado terrorista em Londres.

Essa foi uma das últimas coberturas, a de Londres, daquelas em que a gente percebe que o parceiro é feito do mesmo material. Estávamos indo para Silverstone, eu vindo da França, não lembro bem por que em voos diferentes, cheguei um pouco antes e já no corredor de desembarque em Heathrow vi num aparelho de TV que tinha acontecido alguma merda na cidade, acho que te mandei uma mensagem de celular, marquei de encontrar direto na locadora porque os planos iriam mudar.

E quando você apareceu na locadora os planos já tinham mudado, não precisamos nem discutir o assunto, foda-se Silverstone, estão explodindo a merda toda, foda-se a F1, é para lá que vamos, e fodam-se os jornais, os sites e a rádio. Fomos para Londres, onde você morava na época, inclusive, e ali nosso ofício falou mais alto, lugar de jornalista é onde a notícia está, e a notícia aquele dia era que estavam explodindo a porra toda, e lá fomos nós para o centro do furacão.

Os anos passaram, você também parou de viajar com a F1, a última cobertura internacional foi em Pequim, na Olimpíada, outro turning point, não sei como é que vocês falam isso em português, e você hoje está no Rio, eu estou por aqui, e o jornal te mandou embora e agora é sua vez de começar de novo.

Nunca é tarde, garotão, portanto comece logo e não tenha medo. Já que te deram um outro futuro, faça bom uso dele.

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